Com novas disciplinas do ensino médio, estudantes indígenas desenvolvem sua cultura em sala de aula 19/04/2023 - 09:46

Na Terra Indígena Marrecas, no município de Turvo, região central do Paraná, adolescentes se mobilizam para ouvir as histórias contadas pelos anciãos da comunidade, de etnia Kaingang. A ação faz parte da disciplina Projeto de Vida, implementada desde 2022 no novo ensino médio da rede estadual de ensino. O objetivo da atividade, além de promover a tradição oral como forma de transmitir conhecimento, é valorizar a ancestralidade indígena dentro do cotidiano escolar.

“Aprendi sobre os remédios do mato, as plantas. Gostei muito de sair para fazer pesquisa com os mais velhos, para não perdermos nossos costumes”, diz Simone Kambé, de 15 anos. Aluna do Colégio Estadual Indígena Cacique Otávio dos Santos, ela tem, agora, uma série de disciplinas que integram o conhecimento científico às especificidades de sua cultura.

Matérias novas, como “Saúde Coletiva”, “Filosofia Indígena” (para a 2ª série do ensino médio), “Ecologia e Agroecologia Indígena” e “Organização Social, Política e Direitos Indígenas” (para a 3ª série) são alguns exemplos de um currículo voltado à realidade dos estudantes indígenas, com o objetivo de mantê-los conectados à escola e levando em consideração as suas perspectivas de futuro.

Essas disciplinas compõem o “itinerário formativo integrado” ofertado no novo ensino médio em todas as escolas indígenas da rede estadual. Além do itinerário, o currículo também compreende as matérias tradicionais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que integram a chamada “formação geral básica”.

As mudanças, para a diretora Lina Navroski Beê, possibilitam um maior engajamento dos estudantes com a escola e os mantêm interessados em cursar o ensino médio. “São disciplinas que possibilitam trabalhar de outras formas, não apenas o engessado, o conteúdo fechado em sala de aula”, diz.

Lina ressalta que a aproximação cultural da escola pública com a comunidade é essencial, uma vez que o colégio — que atende hoje 122 estudantes, desde a educação infantil até a conclusão do ensino médio — é o principal elo entre o Estado e os habitantes da Terra Indígena Marrecas. “Para os alunos, a escola é integração, é o diálogo entre a comunidade e a escola. Existe uma relação de confiança com quem está trabalhando aqui. Eles querem ficar próximos”, conta.

Tecnologia e conhecimento ancestral — Outra novidade do novo ensino médio para as escolas indígenas da rede estadual é a disciplina “Informática Básica e Robótica”, presente nas três séries do ensino médio. Neste ano, o professor Luan Felipe de Lima leciona a matéria para os 13 alunos da 1ª série do colégio Cacique Otávio dos Santos.

No primeiro trimestre, a turma já teve introdução à eletrônica, fez ligações simples de led e aprendeu sobre sensores e atuadores. Os alunos não tiveram dificuldade, pois encontraram semelhanças entre o funcionamento de mecanismos da robótica e os das armadilhas que já costumavam montar para capturar animais. “A força potencial do desarme e os gatilhos, por exemplo, são coisas da própria realidade do aluno e que são aplicadas aqui”, afirma Luan.

Já as aulas voltadas à informática começaram pelo funcionamento do computador, do sistema operacional, dos aplicativos e programas, além do uso responsável da internet. Todo o conteúdo é trabalhado de forma alinhada aos conhecimentos ancestrais da comunidade.

“Existe orientação [das lideranças indígenas do Paraná e do Brasil] de como usar a tecnologia como ferramenta e não deixar atrapalhar o desenvolvimento dos jovens e nem acabar substituindo a cultura. Isso acaba se tornando um desafio, e temos que aprender o passo a passo”, observa o professor.

Tradição e filosofia Kaingang — O professor Ismael Corrêa se preparou para assumir a disciplina de “Filosofia Indígena” por meio de leitura e conversas com os anciãos. Assim, ele procura transmitir aos estudantes o modo de fazer ancestral, a ideia de coletividade, além do conhecimento, mitologia e história do povo. 

Um dos temas abordados em suas aulas é a ideia de “duas metades” que permeia a organização social e a visão cosmológica da etnia. Denominadas “kamé” e “kairu”, as duas metades classificam dois grupos distintos que formam o povo Kaingang e eram usadas para evitar o casamento entre parentes — ou seja, um homem kamé deveria se casar com uma mulher do outro grupo, o kairu, e vice-versa.

“A história conta que dois gêmeos saíram de uma montanha, um pelo lado nascente do sol e outro pelo lado poente. Dessa forma se deu a origem das duas marcas”, conta o professor Ismael. As “duas metades” também são usadas para classificar plantas, animais e espíritos.

Perspectivas da comunidade — A terra indígena se tornou objeto de estudo dos alunos do professor Anderson Miranda dos Santos, que leciona Geografia e Economia Comunitária e Sustentabilidade. Ele propôs aos adolescentes uma atividade de cartografia social.

“Os alunos construíram o mapa local da comunidade. Eu falei para eles que a partir daquele mapa poderíamos fazer ainda mais trabalhos, como a questão das nascentes, de moradia, de estudo do solo e das áreas de pesca e da extração do pinhão e da erva-mate”, explica.

Com aulas voltadas a temas locais, os estudantes se sentem confortáveis para expressar também suas perspectivas de futuro. São muitos os projetos de vida: há quem pretenda ficar na comunidade, sair da região, ingressar na faculdade ou iniciar uma família.

“Enquanto professores, sempre prezamos por dar apoio, o melhor para os alunos, independentemente do caminho escolhido”, afirma Anderson. “A gente busca incentivar, porque eles podem ser o que quiserem ser, podem ocupar o espaço que quiserem.”

Semana Cultural Indígena — Entre os dias 11 e 13 de abril, o Colégio Estadual Indígena Cacique Otávio dos Santos promoveu a Semana Cultural Indígena, com atividades organizadas por alunos e professores, em alusão ao Dia dos Povos Indígenas, comemorado em 19 de abril. Turmas de escolas municipais, estaduais e particulares da região puderam visitar o colégio e participar das ações.

A programação incluiu atividades dentro da escola (como feira de artesanato indígena, pintura artística na parede, exibição de vídeos e apresentação de pesquisa sobre o artesanato como fonte de renda) e também na mata próxima ao colégio. Os visitantes puderam fazer caminhada na trilha, aprender como funcionam as armadilhas, experimentar sapecada de pinhão e fazer pintura corporal. Também foi possível experimentar chás de plantas medicinais, ouvir histórias de moradores e praticar esportes como arco e flecha, corrida da tora e cabo de guerra.

Atuando como guia, o professor Anderson compartilhou com os estudantes visitantes informações sobre o colégio e sobre a cultura Kaingang. “A trilha em si já é um atrativo. Muitas das crianças nunca haviam andado numa reserva indígena”, comenta.

Matriz curricular das escolas indígenas — O novo ensino médio paranaense, implementado desde 2022, prevê disciplinas específicas na matriz curricular dos colégios estaduais indígenas. Nas três séries do ensino médio, eles cursam, além das matérias da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as disciplinas de “Projeto de Vida e Bem Viver”, “Informática Básica e Robótica” e “Laboratório de Escrita e Produção Audiovisual”.

A partir da 2ª série do ensino médio, os estudantes cursam um itinerário formativo que integra as quatro áreas do conhecimento — Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Esse itinerário contempla conteúdos específicos voltados às comunidades indígenas.

Na 2ª série, por exemplo, as disciplinas do itinerário formativo são “Filosofia Indígena”, “Saúde Coletiva” (dentro da área de Biologia) e Cultura Corporal Indígena (dentro de Educação Física). Já na 3ª série, as matérias do itinerário são “Etnofísica e Astronomia Indígena” (vinculada à Física), “Química Ambiental”, “Ecologia e Agroecologia Indígena” (vinculada à Biologia), “Território, Ambiente e Sustentabilidade” (vinculada à Geografia), “Organização Social, Política e Direitos Indígenas/História dos Povos Indígenas” (vinculada à História) e “Arte e Artesanato Indígena”.

Escolas indígenas no Paraná — A rede estadual de ensino do Paraná conta com 39 escolas indígenas, inscritas em suas terras e culturas, contemplando mais de 5 mil estudantes. Essas instituições de ensino têm normas, pedagogia e funcionamento próprios, respeitando a especificidade étnico-cultural de cada povo. Os estudantes têm direito a ensino intercultural e bilíngue (com aulas da língua indígena e de português) desde o início de sua jornada escolar, visando à valorização da diversidade étnica.